quinta-feira, 6 de agosto de 2009

PAPAI


Ele tinha os olhos de um pai. Seu olhar sempre me inspirava ternura. As mãos eram frágeis. Uma delas pegava o maço de cigarros, retirava um e, com a outra, acendia o isqueiro. Em seguida, dava uma longa tragada e baforava a fumaça para fora. O ar ficava cheio da fumaça do seu cigarro. Ele não tinha uma poltrona para se sentar. Sentava-se no canto do sofá, apoiava o braço no encosto, e ficava ali, fitando o cigarro que acabara de acender. Um momento de silêncio.

Meu pai fazia isso toda vez depois do jantar. Ele não comia muito. Colocava um pedaço de carne no prato, do jeito que a empregada havia preparado, um pouco do legume, algumas rodelas de tomate salpicadas com sal e umas duas batatas cozidas. Comia devagar, uma garfada de cada vez, mastigava lentamente, saboreando cada grama da comida que havia colocado no prato. Deixava-o limpo quando acabava de comer. Tomava um gole de água, olhava para o lado e levantava-se da mesa depois de limpar a boca com o guardanapo. E ia sentar-se no canto direito do sofá.

O sofá era marrom. Marrom como os seus cabelos. E os olhos, em vez de marrons, eram claros. Ou talvez, tivessem muita luz, por isso pareciam claros. Papai era alto, bonito. Tinha a cara raspada, escanhoada todo dia. Conversava pouco. Mas em cada palavra que pronunciava, habitava um mundo de imagens. Cada imagem, mil divagações. E eu ouvia papai. Ele era como uma escultura de mármore. Mas uma escultura com vida. E a vida que havia em papai era diferente da minha. Não vivia no passado, como quase todos os velhos. Vivia o seu momento. Mas ele deixava tanto espaço entre um momento e outro, que parecia que cada um estava cheio de lembranças.

Papai não falava de suas recordações. Acabava perguntando pelo que eu fizera naquele dia. E ele me ouvia com tanto gosto que eu ficava certa de que ele gostava de me ouvir. A cada coisa que eu dizia, eu deixava um momento para que ele pudesse falar. Às vezes, ele retrucava o que eu havia dito, às vezes, sorria ou fazia cara de bravo. Sabe como é, pais não gostam de excentricidades.

Nunca menti para papai. E mesmo se eu o fizesse, ele saberia. Iria me olhar como se me observasse por cima dos óculos. Só que ele não usava óculos. E eu estaria desconcertada no mesmo instante.

Para mim parecia que papai sofria muito. Sozinho. Para mim, papai era um monumento. Se ele sofria, não nos interessava saber por quê. Tinha lá seus problemas e isso era da conta dele. Nunca nos deixou aflitos, mesmo quando nos faltavam as coisas dentro de casa.

Amava mamãe. Ela era perfeita para ele. Agia com tamanha perfeição, que não se poderia imaginar outra mulher para ele. E nós amávamos mamãe. Porém papai era o centro da casa. Mamãe ao seu lado. E nós, os cinco irmãos, éramos as pérolas do colar, unidas pelo mesmo fecho. Tudo começava e terminava neles. Nós éramos a volta do colar. Talvez não um colar de duquesa, mas um belo colar, sem nenhuma pérola falsa.

Papai era o exemplo. Ele, o espelho em que nós nos mirávamos. Eu era a terceira filha. Paulo era o mais velho. Depois, Roberto. Eu, Monica e Diogo. Diogo tinha seis anos quando papai o levou para a escola, pela primeira vez. Fizemos uma festa. Diogo, por ser o mais novo, era o último a entrar no mundo dos homens. Pela mão de papai. Um a um, ele havia levado à escola. A primeira porta para o convívio com o mundo de fora.

Aqui dentro, o mundo era perfeito. O de fora, papai fazia que não parecesse tão tenebroso. Por isso, levara-nos pela mão. E mostrou-nos, que, por mais duro que o mundo parecesse, nós não deveríamos esmorecer. Papai era uma lição. Todo dia. E nós admirávamos papai como se ele fosse um deus humano. Ele fumava calmamente o cigarro e na fumaça aparecia seu rosto. Límpido. Livre.

Sei que Roberto, hoje, é igual a papai. Mesmo sem os cigarros. Paulo morreu num acidente de automóvel. Monica virou atriz de teatro e deve estar rodando mundo afora em suas apresentações sensacionais. Diogo, que antes parecia tão frágil como as mãos de papai, é engenheiro civil. E eu, que passava as noites a ver e ouvir papai depois do jantar, continuei escrevendo minhas memórias. Que nasceram no dia em que descobri que nós éramos papai, cinco vezes.

São Paulo, 30 de julho de 1979

Thereza Christina Rocque da Motta

A FLOR ENCANTADA


Ah! Que la vie est quotidienne!

Jules Laforgue

Ana pousou, enfim, as mãos sobre a mesa já posta. A toalha secava seu olhar úmido. A tarde esvaziava-se, lenta. Olhou os pratos, solenes em sua branca dormência, à espera dos visitantes. Respirava docemente, cansada do seu longo dia, como se desfolhasse ao vento. De repente, um leve bater à porta a fez pestanejar de espanto e, sem conter a hesitação, dirigiu-se até a entrada da casa. Tudo parecia ocupar o lugar de sempre. Apenas ela estava ausente. Não cuidara de ver a hora e eis que a pegavam ainda incompleta, desencontrada. Não sabia o que fazer. Estava ela ali, a cuidar das visitas do marido que ainda não havia chegado. Uma quase mudez cercava-a por completo. Porém, logo a melancolia devastava a placidez de seus movimentos. Felipe chegara. Correu ao quarto vestir-se depressa. Sentia a cabeça rodando, uma espécie de falta de ar, uma ansiedade que a incomodava, causando-lhe pânico. Pintou os olhos, escovou os cabelos e ajeitou-os na nuca formando um pequeno coque. Ao voltar para a sala, recebeu as flores que outro casal de amigos havia trazido. Ornou o vaso de cristal com as rosas abertas. Como as rosas, ela se sentia murchar ao calor da casa. Ana mantinha-se alheia à conversa, desinteressada e distante. As vozes invadiam-na, mortificando-a de angústia. E os outros mal notavam seu estupor, enquanto degustavam, prazerosamente, a galinha encharcada de óleo.

A noite passou despercebida. Foi-se a última visita. O sono já lhe pesava, imenso. Ela não mais pensava. Apagou todas as luzes e seguiu para o quarto, quase dormindo, bocejando as palavras, arrastando os pés no tapete. Caiu na cama, sem barulho.

O marido, ao vê-la, reconheceu seu rosto triste, seu silêncio de sempre. Puxou-a para si, vislumbrando na escuridão a sua mulher, que somente ele conhecia e não se cansava de amar. Que se mostrava para ele como jamais vira mostrar-se para outra pessoa. Sabia que estava suada de tédio e não reclamava. E seu desabafo era, apenas, um agonioso sorriso. No entanto, era ela, com seu parco silêncio, quem o acalmava das turbas dos homens, reduzindo-o a um mero ser dolorido. Era ela quem compartilhava suas dores, mesmo sem compreender, quem aliviava suas mágoas, quem desfazia seu cansaço, restituindo-lhe sua felicidade de poucas alegrias. Era ela, sua única alegria.

Ana abriu os olhos e fitou-o, comovida. Estava tão entregue aos lençóis, tão farta do trabalho caseiro e tanto sonho de princesa. Abraçou-o, encostando-o ao travesseiro, num pedido de sono e promessa de uma manhã longínqua. Felipe ficou ali, perto dela, aceitando o sono que já o dissolvia, fazendo-o sentir-se sem culpa, sem nome, apenas ele.

***

Mal amanheceu, Ana empurrou-se para fora da cama. Abriu as janelas e o vento esfriou-lhe o corpo. Voltou-se para Felipe, ainda deitado. Olhou-o com carinho e demorou-se assim, percebendo seus olhos cerrados, sua expressão adormecida. Por instantes, esqueceu de ir à cozinha, de preparar o café, de esquentar o leite, pegar o pão. Sentiu vontade de passar o dia a admirar o seu homem, o marido, Felipe. Ele envelhecia bonito. Chegou perto dele, acariciou seus cabelos escuros e ficou sentada ao seu lado, sem coragem para abandoná-lo dormindo. Pensando isso, levantou-se devagar e saiu do quarto.

Vagou pela sala, absorta num marasmo indefinível. Quis entender por que se sentia tão solta, tão sem rumo, tão incerta. Amava Felipe e era bom. Não tinham filhos ainda, mas isso viria com o tempo. Ana sabia que havia algo que a torturava muito. O monótono do seu dia, a falta de Felipe. Não gostava de se sentir tão só. Os amigos de Felpe haviam procurado entretê-la com conversas sobre política, assuntos de escritório, boates, uísques e viagens. Ela permanecera apagada, desligada, torpe para o burburinho de futilidades que a mergulhava ainda mais em desprazer. Felipe admirava seu colega Russel, o bravo Henrique de tantas histórias fantásticas. Ana bocejava com discrição. Sua mulher, Clara, como era atenciosa. Mas um enjoo. E estiveram também os Cunha, Flavio e Elisa, os Afonso Machado, Sergio e Maria Augusta. E Ana parecia bonita em sua solidão. Felipe, sempre animado, entusiasmado. O rapagão simpático. Mas Ana sabia como buscar nele o verdadeiro Felipe, desolado e inseguro, e trazê-lo à tona para matar a sede do seu sofrimento. Amava-o tanto!

Na cozinha, os pratos coloriam o metal da pia e os talheres ensopavam-se no molho de detergente. Descerrou a cortina em cima do fogão e a luz entrou estreita e comprida pelos vãos dos vidros. Principiou a aprontar o café da manhã, ardendo de fome e calor. Felipe chamou-a de dentro. Encontrou-a na sala e, olhando-o muito, esqueceu todos os seus pensamentos ao beijá-lo. Caminharam para a cozinha, enquanto Ana lhe perguntava como tinha dormido. Distraiu-se assim, e nem notou que o leite transbordara da leiteira, cobrindo o fogão com uma lava branca de espuma. Soltou-se de Felipe num “Meu Deus!”, e correu para apagar o fogo, desatando a rir.

– Vê o que me fez fazer?

Felipe também ria, sentado à mesa, apreciando, de longe, a forma esguia de Ana. Um dia soube entender aquele jeito de menina, aquele andar desligado, aquele corpo que se dispunha sereno. Ela trouxe os ovos quentes, o pão e serviu-lhe o café. Sentou-se à sua frente, encerrada em sua meiguice, numa calma que não conseguia esconder, de todo, a turbulência fumegante dos olhos, a inquietação constante, a solidão do seu dia. Felipe alcançou a sua mão sobre a mesa e apertou-a, solidariamente triste, sinceramente machucado pela paciência da mulher. Disse:

– Amanhã é sábado.

Ana, recuada em seu silêncio, fez um ar de sempre ouvir. Franziu o nariz, numa demonstração de carinho e repetiu, evasiva:

– Amanhã é sábado...

Então, lembrou-se de olhar a geladeira, fazer a lista do supermercado. Ocupava-se instintivamente da casa. Tornara-se um hábito zelar por ela. Felipe percebia seus gestos fugidios. Ana coroava-se de encargos. Com ela, estavam todos os seus cuidados, embebidos numa sensatez incomparável, de uma compreensível irracionalidade. Ressentia-se de vê-la assim. Queria redimi-la do serviço da casa, curá-la daquele mal imposto, levá-la para passear, para fazer compras, deixar de lado os afazeres, desmontar toda aquela vida de compromissos, submeter-se à vontade de ficar com ela mais tempo.

Ana permanecia longe, abalada, submissa, revolta em seu desespero que emergia nas lágrimas, apavorando-a como no jantar com os amigos do escritório. Sabia que ela permanecera calada não por vontade, mas por mal-estar. Sentia-se um pouco culpado. Havia algo que se deixava estar dentro dela que ele não pudera perceber totalmente. Tentara aproximar-se tantas vezes e ela se recusava gentilmente para não incomodá-lo com “besteiras”, como ela mesmo dizia. E prometia um sorriso. Mas o sorriso não vinha. Chorava em seu ombro, como se uma dor muito grande a houvesse cerrado nos punhos, levando-a à loucura. Pobre Ana! Por que não lhe dizia logo o que se passava?

Aproximou-se dela. Antes que pudesse tocá-la, ela perguntou, rápida:

– Você já vai?

Felipe quis dizer que não. Que ficaria em casa. Que deixaria de ir trabalhar para que ela o tivesse por perto e, quem sabe, começar a mudar tudo aquilo que para ela parecia ser o mais certo, tirá-la do exílio em que se isolara, sensível e encolhida, e de onde lhe acenava um adeus quando partia pela manhã. Que a faria entender tantas coisas para que vivesse sem mais tanto dissabor. Mas ela continuou, ainda rápida:

– E não se esqueça de me trazer, por favor, o...

Não a deixou terminar. Beijou-a de um modo intenso, abraçando-a muito contra si, como se quisesse dissipar todo o medo de Ana. Não, ele não poderia deixá-la, não naquele momento, não quando ela naufragava cada vez mais no obscuro esconderijo de cada dia. Não, se ele pudesse trazê-la de volta, recapturá-la, reconstruir o mundo perdido de Ana.

Suspirou, inconformado. Ana imobilizara-se em seu abraço, tão pequena e indefesa, novamente incrustada em sua inabalável mudez.

– Sim, está bem. Eu não vou esquecer.

E, sem palavras ou pressentimentos, dirigiu-se à porta.

São Paulo, 15 de novembro de 1976

Thereza Christina Rocque da Motta

JUÇA E ANINHA


Juça era o macaquinho favorito de Aninha.

Aninha só comia, dormia e passeava segurando o Juça debaixo do braço.

Juça era marronzinho, coberto de pêlos macios, que Aninha penteava, penteava, até ficarem bem lisinhos.

Não importava quantos brinquedos Aninha ganhasse, mais bonitos, mais modernos, diferentes, bonecas, casinha, panelinha, mesinha e cadeirinha, que o Juça continuava sendo o brinquedo preferido de Aninha.

Juça era tão querido, tão querido, que Aninha espremia e esfregava a cara do macaquinho na dela, tanto, tanto, que o Juça ficou com a cara gasta.

Juça ficou tão esfregadinho, que a babá Dietty teve de costurar outra cara pro Juça.

E Aninha continuou brincando e carregando o Juça pra todo lado.

Um dia, Aninha quis levar o Juça na primeira vez que foi à escola e lá foi o Juça agarrado com a Aninha.

Na escola, acharam o Juça muito bonitinho, mas ele não podia ficar: sabe como é, as outras crianças não haviam trazido brinquedos de casa, então o Juça não podia ficar ali.

A professora entregou o Juça pra mamãe da Aninha e começou a conversar sobre outras coisas, mostrando os trabalhinhos das crianças da escola e tudo isso e patati-patatá.

Quando Aninha acabou de ver tudo, disse:

– É tudo muito bom. Gostei muito de ver todas essas coisas. Acho que já podemos ir embora.

– Não, disse a professora. Vamos ver mais algumas outras coisas.

E foi distraindo a Aninha, até que ela olhou pra trás e descobriu que a mãe dela tinha ido embora com o Juça.

– Cadê minha mãe? – perguntou Aninha.

– Mamãe já volta. Vamos sentar perto de uma coleguinha?

Aninha sentou-se ao lado de uma menininha de cabelo preto e liso e de grandes olhos azuis, que já sabia fazer os trabalhinhos da escola.

– Vamos bordar cartolina! – disse a menininha e mostrou como se enfiava a lãzinha na agulha e como se espetava a cartolina, passando a lãzinha de lá pra cá.

– É fácil, disse a menininha. Você consegue fazer.

Aninha começou a bordar junto com a nova amiguinha e o dia foi passando.

Mas quando o sol já ia caindo e Aninha percebeu que estava ficando tarde e que a mãe dela não voltava logo como tinham prometido, Aninha começou a ficar preocupada.

Será que minha mãe não volta?, pensou. Acho que ela não volta mais. Acho que ela não volta nunca mais! Mamãe me esqueceu aqui! E começou a chorar:

– Uáááá!

A professora correu pra ver porque Aninha estava chorando.

– Que foi que aconteceu, Aninha?

Aninha que estava muito assustada e não queria dizer por que estava chorando, respondeu:

– Perdi minha agulha! Uáááá!

Arrumaram outra agulha para Aninha, que continuou bordando, até acabar o trabalhinho.

Depois, Aninha voltou pra casa. Afinal, a mãe não tinha se esquecido dela, apenas esqueceu de dizer que aquilo não era apenas uma visita, mas um lugar onde Aninha iria passar as tardes dela dali pra frente.

Juça estava em casa esperando Aninha voltar.

– Puxa, Juça, pensei que nunca mais iria voltar pra casa. Ainda bem que estou de volta. E você, mamãe cuidou direitinho de você?

Aninha foi dormir naquele dia grudada com o Juça. O amiguinho não podia ir pra escola com ela, mas iria ficar em casa esperando todo dia ela voltar.

Aninha entendeu que estava crescendo e tudo aquilo, escola, professora, coleguinhas, fazia parte de outro mundo, fora da casa de Aninha.

E que o mundo tinha um lado de fora e um lado de dentro.

Dentro estava o Juça e fora, todo o resto que Aninha começava a descobrir. Aninha iria crescer, estudar, aprender novas coisas e tudo o Juça iria ficar sabendo, quando Aninha voltasse pra casa.

Aninha beijou o Juça e deitou-se abraçadinha com ele:

– Boa noite, Juça, amanhã tem outro dia de escola! Durma bem!

Aninha dormiu profundamente. Afinal, aquele tinha sido um dia muito diferente!

Thereza Christina Rocque da Motta – 1996

Baseado em fatos reais.

COROCO E COROCA


Coroco e Coroca eram dois vovós muito simpáticos, que viviam perto de um lago e de uma enorme floresta.

Coroco tinha bigodes bem brancos e usava um chapéu de aba larga e camisa xadrez.

Coroca usava um coquinho e vestidos coloridos bem compridos e oclinhos de aros bem finos.

Coroco e Coroca acordavam de manhã bem cedinho e iam tomar café. Coroca comia um pãozinho que ela mesma tinha assado na véspera. Coroco gostava de biscoitos molhados no café preto.

Depois, Coroco saía para trabalhar na floresta. Tinha muito que fazer. Cortava lenha para a fogueira, varria as folhas que tinham caído no chão durante a noite, fazendo um enorme monte de folhas secas. Colhia algumas frutas e colocava-as na cestinha que Coroca tinha lhe dado. Quando acabava, ia pescar. E passava a manhã toda no lago, esperando os peixes beliscarem a isca.

De manhã, Coroca arrumava a casa todinha. Lavava os pratos, preparava o almoço – muitos legumes que plantava na horta atrás da casa e que de manhã ia colher. Quando terminava de cozinhar as batatas, as ervilhas e as cenouras, ia varrer a sala.

Que bagunça que Coroco fazia! Colocava os livros de volta nas estantes, guardava os papéis espalhados na escrivaninha e punha a toalha e os pratos na mesa para o almoço.

Ao meio-dia, Coroco voltava com os peixes.

– Que bom! – dizia Coroca. – Você pescou um monte desta vez.

Coroco era ótimo pescador. Às vezes, pegava o barquinho e ia pro meio do lago pescar os peixes que Coroca fazia para o almoço. E quando estava tudo pronto, sentavam-se para comer.

Despois do almoço, Coroco e Coroca tiravam uma pestana e, à tardinha, iam passear pelo lago e pela floresta. As árvores, bem altas, balançavam ao vento. E as nuvens, lá em cima, se espalhavam pelo céu.

Quando anoitecia, Coroco e Coroca voltavam pra casa, acendiam o candeeiro e, enquanto Coroco abria seus livros para ler, Coroca pegava na agulha de tricô para fazer umas meias.

Aí Coroco lia histórias pra Coroca ouvir. E no meio de tantas histórias, Coroca às vezes dormia, recostada na cadeira.

– Acorda, que eu ainda não acabei a história! – dizia Coroco.

– Ahn? E o que aconteceu depois? – respondia Coroca, sonolenta.

– Então, o rei voltou ao palácio e criou uma nova lei. A partir daquele dia, todos os seus súditos podiam participar das caçadas reais. Assim, poderiam levar a caça que o rei não quisesse para si.

– Que bonito! Isso é que é um rei bom!

E Coroco passava o resto da noite lendo histórias para Coroca.

Quando já era bem tarde, Coroco e Coroca iam dormir. A cama macia e arrumadinha com lençóis bordados bem brancos estava esperando para um sono gostoso.

Coroco apagava a vela depois que Coroca já tinha se deitado e ambos dormiam felizes, porque aquele dia também tinha sido muito bom.

Thereza Christina Rocque da Motta – 1996

A FADA DAS PEDRINHAS


Era uma vez uma menina que morava sozinha com a mãe no meio de uma floresta.

Um dia, a mãe pediu a ela que fosse buscar morangos para fazer uma torta. A torta seria preparada para o dia de Ano Novo...

A menina gostava de passear por um caminho que só ela conhecia, então ela foi buscar morangos nesse caminho...

Nesse caminho, além dos morangos, havia um riacho bem rasinho, onde a menina gostava de pegar pedregulhos na beirinha... E lá foi a menina buscar morangos naquele seu caminho...

O dia estava quente, então a menina resolveu molhar os pés na água... E pegar umas duas pedrinhas.. E colocá-las no bolso.. Mas quando ia se abaixar, ouviu uma vozinha:

– Ei, menina! Deixe a pedrinha aí!

– Quem falou? – perguntou a menina.

– Fui eu, a dona das pedrinhas... Se você ficar levando as pedrinhas embora, logo, logo fico sem mais pedrinhas... Deixe a pedrinha aí!!

– Mas eu acho as pedrinhas tão bonitas! Deixe eu levar só mais uma!

– Se levar a pedrinha, vai ter de me levar também com você!

– E onde é que eu iria colocar você? – perguntou a menina, procurando ver com quem estava falando.

Debaixo de uma folha, apareceu uma fadinha azul... toda vestida de cor-de-rosa...

– Ah, então é você a dona das pedrinhas?

– Sim, sou eu... Já que você gosta tanto de pedrinhas, devia me levar pra casa... assim eu faço companhia pra você... Eu fico aqui tão sozinha...

– Eu também... Por isso eu brinco com qualquer coisa que encontro...

– Eu sei... e por isso leva embora as minhas pedrinhas!

– Não, eu não levo mais... se você não quiser...

– Você disse que queria levar mais uma!

– Mas aí vou ter de levar você comigo pra casa! O que minha mãe vai dizer?

– Sua mãe não vai dizer nada... Eu fico quietinha...

– Quietinha? E fadas ficam quietinhas?

– Eu fico... Eu sou uma fadinha-princesa... muito comportadinha...

– Não sei, não...

– Me leve com você! Adoraria ir com você pra sua casa... Prometo não mexer em nada.

– Está bem.

A menina colocou a fadinha no bolso do avental, junto com a pedrinha que a fada lhe deu. E começou a catar os morangos, antes que esquecesse por que tinha vindo até o riacho.

No meio do caminho, encontraram um homem muito velho, que pediu algo para comer.

– Eu só tenho morangos – disse a menina.

– Morangos? Mas eu não quero morangos... Eu quero pão...

– Não tenho pão, meu senhor... Só uma pedrinha...

– Essa serve – disse o velho.

E ele estendeu a mão para pegar a pedrinha. Quando a menina colocou a pedrinha na mão do homem, ela tinha virado um pedaço de pão! Ela olhou espantada, mas não disse nada. O homem pegou o pão e se afastou.

– Que estranho... – pensou a menina. - Eu sei que dei a ele uma pedrinha, mas ele pegou um pão!

– Ih, ih, ih... – riu a fadinha.

– Foi você, não foi? Como você fez isso?

– É simples. É só dizer umas palavras mágicas, que a pedrinha vira um pãozinho...

– Simples? Assim você vai transformar tudo na minha casa em outra coisa!

– Quem sabe? – perguntou a fadinha.

E a menina voltou para casa com a fadinha escondida no bolso e a cesta de morangos no braço.

Ao chegar em casa, viu que sua mãe não estava.

– Ué? Onde ela foi?

Viu um bilhete em cima da mesa, que dizia:

Filhinha, fui ao mercado na cidade comprar farinha para a torta.

O que tem, não dá pra fazermos a torta de Ano Novo.

Beijos,

Mamãe

A menina esperou a mãe voltar sentadinha perto da lareira e... adormeceu... como adormecem todas as meninas quando ficam quietinhas.

Quando acordou, olhou em volta. A casa que era pequena, agora estava maior. A fadinha tinha sumido e a mãe estava sentada à sua frente, sorrindo para ela...

– Onde está a minha fadinha?

– Fadinha? Não sei de fadinha alguma, mas quando voltei pra cá, encontrei outra casa no lugar... e vi você dormindo. Não entendi nada, mas quando algo assim acontece, é melhor não duvidarmos... Você não sabe quem encontrei no mercado...

A menina olhou para a porta e viu um homem alto entrando. No primeiro instante, não entendeu quem era, mas pela expressão da mãe, sabia que ela o conhecia. Olhou para a mãe e perguntou:

– É dele que você sempre fala?

– Sim, é. É o seu pai.

A menina correu para o pai, sem nem saber por que fazia isso, mas estava tão contente que esqueceu de tudo... A casa estava diferente, mas isso tinha sido a fada. Sua mãe parecia feliz e isso era bom.

O Ano Novo começava realmente novo. Nessa noite, fizeram uma festa inesquecível.

Na hora de ir dormir, a menina beijou o pai e disse:

– Boa noite, papai. Sempre será a primeira vez que lhe digo boa noite, porque nunca será a última...

Beijou o pai, fechou os olhos e dormiu.

Este conto de fadas foi escrito online no chat do ICQ para meu amigo Paulo Roberto Adalberto, de Araraquara, que me pediu que lhe contasse uma história antes de ir dormir, lá pelas três da manhã, em 4 de novembro de 1998. Inventei na hora.

CARNAVAL (ou quase isso)

Uma manhã molhada das chuvas da madrugada rompeu sobre as ruas batidas com uma claridade clandestina, roubada de um céu nevoado – e eu, da porta de casa, era o único habitante da cidade.
A noite mal dormida pesava-me nos olhos, contrário à minha resistência. Lascivamente, deixava-me atravessar os minutos num passo desacelerado.
Custou-me acreditar que sempre fora assim – o dia todo parado, numa monotonia singular de uma irrecuperável solidão. E, embora, em alguma outra parte, comemorassem com a vida a própria existência, aqui tudo parecia mudo.
A noite inteira passou assim silenciosa. Apenas grupos dispersos iam de um lugar a outro e eu bebera sozinho a cachaça do bar. Apenas eu para festejar com meu violão o samba da Portela e eu apenas para entrar em casa tarde ou talvez, cedo demais.
A mulher havia deixado a casa para eu cuidar da minha vida – em outros tempos, eu que saísse para dar uma volta pelo bairro e chegasse atrasado para o jantar de uma conversa com amigos na esquina. Tudo acabara.
Os dias dissolutos eram impraticáveis. Eu cada vez mais só e amargo. Eu cada vez mais triste. E, no entanto, era domingo. Terça-feira Gorda eu haveria de comer a bisteca de Rose. Ah, Rose! Meu consolo público! Minha confessora comunitária! Minha amada e tão amada mulher da vida. A minha, oras!
O rádio sintonizado na Globo colocava-me a par do que se passava na Presidente Vargas. E eu ouvia a tudo, indiferente. A bisteca e o corpo de Rose, sim, esses valiam a pena serem destacados do meu pensamento, louvando o meu dia aziago.
E apenas eu para me lamentar do mundo. O vizinho saíra para Poços de Caldas, talvez e o padeiro da frente aposentara-se para casar a filha com um picareta qualquer, deixando-me sem pão.
Li o jornal prestando atenção nas letras grandes e nas fotos e nos anúncios e nas tiras de desenhos do Brucutu, num ato de impensada resolução. E, no entanto, era Carnaval. Eu findaria por fim louco. Abandonado à minha própria preguiça. Alienado como um combatente de guerra. Sujeito a tudo e a nada. Alvo de um tiro certo de um ladrão no beco da Rua das Trepadeiras.
Tudo, enfim, era apenas um – eu. Eu e o resto do dia. Nesse momento, pensei em abrir a porta e sair para passear no parque. Mas, não. Baixei os olhos e chorei.


Thereza Christina Rocque da Motta
Rio de Janeiro, fevereiro de 1976


Thereza Christina Rocque da Motta (1957) é poeta, editora e tradutora. Publicou Joio & trigo, Areal, Sabbath, Alba, Chiaroscuro, Rios, Lilases, Marco Polo e a Princesa Azul, O mais puro amor de Abelardo e Heloísa, Futebol e mais nada, Odysseus e O livro de Pandora, As liras de Marília, Capitu, Folias e Horizontes, Lições de sábado. Traduziu poemas Anne Morrow Lindbergh (O Unicórnio e outros poemas, Ibis Libris, 2015), Shakespeare (44 Sonetos escolhidos e 154 Sonetos, Ibis Libris) e Edgar Allan Poe (O Corvo, 2013). Fundou a Ibis Libris em agosto de 2000.