quinta-feira, 6 de agosto de 2009

CARNAVAL (ou quase isso)

Uma manhã molhada das chuvas da madrugada rompeu sobre as ruas batidas com uma claridade clandestina, roubada de um céu nevoado – e eu, da porta de casa, era o único habitante da cidade.
A noite mal dormida pesava-me nos olhos, contrário à minha resistência. Lascivamente, deixava-me atravessar os minutos num passo desacelerado.
Custou-me acreditar que sempre fora assim – o dia todo parado, numa monotonia singular de uma irrecuperável solidão. E, embora, em alguma outra parte, comemorassem com a vida a própria existência, aqui tudo parecia mudo.
A noite inteira passou assim silenciosa. Apenas grupos dispersos iam de um lugar a outro e eu bebera sozinho a cachaça do bar. Apenas eu para festejar com meu violão o samba da Portela e eu apenas para entrar em casa tarde ou talvez, cedo demais.
A mulher havia deixado a casa para eu cuidar da minha vida – em outros tempos, eu que saísse para dar uma volta pelo bairro e chegasse atrasado para o jantar de uma conversa com amigos na esquina. Tudo acabara.
Os dias dissolutos eram impraticáveis. Eu cada vez mais só e amargo. Eu cada vez mais triste. E, no entanto, era domingo. Terça-feira Gorda eu haveria de comer a bisteca de Rose. Ah, Rose! Meu consolo público! Minha confessora comunitária! Minha amada e tão amada mulher da vida. A minha, oras!
O rádio sintonizado na Globo colocava-me a par do que se passava na Presidente Vargas. E eu ouvia a tudo, indiferente. A bisteca e o corpo de Rose, sim, esses valiam a pena serem destacados do meu pensamento, louvando o meu dia aziago.
E apenas eu para me lamentar do mundo. O vizinho saíra para Poços de Caldas, talvez e o padeiro da frente aposentara-se para casar a filha com um picareta qualquer, deixando-me sem pão.
Li o jornal prestando atenção nas letras grandes e nas fotos e nos anúncios e nas tiras de desenhos do Brucutu, num ato de impensada resolução. E, no entanto, era Carnaval. Eu findaria por fim louco. Abandonado à minha própria preguiça. Alienado como um combatente de guerra. Sujeito a tudo e a nada. Alvo de um tiro certo de um ladrão no beco da Rua das Trepadeiras.
Tudo, enfim, era apenas um – eu. Eu e o resto do dia. Nesse momento, pensei em abrir a porta e sair para passear no parque. Mas, não. Baixei os olhos e chorei.


Thereza Christina Rocque da Motta
Rio de Janeiro, fevereiro de 1976


Thereza Christina Rocque da Motta (1957) é poeta, editora e tradutora. Publicou Joio & trigo, Areal, Sabbath, Alba, Chiaroscuro, Rios, Lilases, Marco Polo e a Princesa Azul, O mais puro amor de Abelardo e Heloísa, Futebol e mais nada, Odysseus e O livro de Pandora, As liras de Marília, Capitu, Folias e Horizontes, Lições de sábado. Traduziu poemas Anne Morrow Lindbergh (O Unicórnio e outros poemas, Ibis Libris, 2015), Shakespeare (44 Sonetos escolhidos e 154 Sonetos, Ibis Libris) e Edgar Allan Poe (O Corvo, 2013). Fundou a Ibis Libris em agosto de 2000.

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