quinta-feira, 6 de agosto de 2009

PAPAI


Ele tinha os olhos de um pai. Seu olhar sempre me inspirava ternura. As mãos eram frágeis. Uma delas pegava o maço de cigarros, retirava um e, com a outra, acendia o isqueiro. Em seguida, dava uma longa tragada e baforava a fumaça para fora. O ar ficava cheio da fumaça do seu cigarro. Ele não tinha uma poltrona para se sentar. Sentava-se no canto do sofá, apoiava o braço no encosto, e ficava ali, fitando o cigarro que acabara de acender. Um momento de silêncio.

Meu pai fazia isso toda vez depois do jantar. Ele não comia muito. Colocava um pedaço de carne no prato, do jeito que a empregada havia preparado, um pouco do legume, algumas rodelas de tomate salpicadas com sal e umas duas batatas cozidas. Comia devagar, uma garfada de cada vez, mastigava lentamente, saboreando cada grama da comida que havia colocado no prato. Deixava-o limpo quando acabava de comer. Tomava um gole de água, olhava para o lado e levantava-se da mesa depois de limpar a boca com o guardanapo. E ia sentar-se no canto direito do sofá.

O sofá era marrom. Marrom como os seus cabelos. E os olhos, em vez de marrons, eram claros. Ou talvez, tivessem muita luz, por isso pareciam claros. Papai era alto, bonito. Tinha a cara raspada, escanhoada todo dia. Conversava pouco. Mas em cada palavra que pronunciava, habitava um mundo de imagens. Cada imagem, mil divagações. E eu ouvia papai. Ele era como uma escultura de mármore. Mas uma escultura com vida. E a vida que havia em papai era diferente da minha. Não vivia no passado, como quase todos os velhos. Vivia o seu momento. Mas ele deixava tanto espaço entre um momento e outro, que parecia que cada um estava cheio de lembranças.

Papai não falava de suas recordações. Acabava perguntando pelo que eu fizera naquele dia. E ele me ouvia com tanto gosto que eu ficava certa de que ele gostava de me ouvir. A cada coisa que eu dizia, eu deixava um momento para que ele pudesse falar. Às vezes, ele retrucava o que eu havia dito, às vezes, sorria ou fazia cara de bravo. Sabe como é, pais não gostam de excentricidades.

Nunca menti para papai. E mesmo se eu o fizesse, ele saberia. Iria me olhar como se me observasse por cima dos óculos. Só que ele não usava óculos. E eu estaria desconcertada no mesmo instante.

Para mim parecia que papai sofria muito. Sozinho. Para mim, papai era um monumento. Se ele sofria, não nos interessava saber por quê. Tinha lá seus problemas e isso era da conta dele. Nunca nos deixou aflitos, mesmo quando nos faltavam as coisas dentro de casa.

Amava mamãe. Ela era perfeita para ele. Agia com tamanha perfeição, que não se poderia imaginar outra mulher para ele. E nós amávamos mamãe. Porém papai era o centro da casa. Mamãe ao seu lado. E nós, os cinco irmãos, éramos as pérolas do colar, unidas pelo mesmo fecho. Tudo começava e terminava neles. Nós éramos a volta do colar. Talvez não um colar de duquesa, mas um belo colar, sem nenhuma pérola falsa.

Papai era o exemplo. Ele, o espelho em que nós nos mirávamos. Eu era a terceira filha. Paulo era o mais velho. Depois, Roberto. Eu, Monica e Diogo. Diogo tinha seis anos quando papai o levou para a escola, pela primeira vez. Fizemos uma festa. Diogo, por ser o mais novo, era o último a entrar no mundo dos homens. Pela mão de papai. Um a um, ele havia levado à escola. A primeira porta para o convívio com o mundo de fora.

Aqui dentro, o mundo era perfeito. O de fora, papai fazia que não parecesse tão tenebroso. Por isso, levara-nos pela mão. E mostrou-nos, que, por mais duro que o mundo parecesse, nós não deveríamos esmorecer. Papai era uma lição. Todo dia. E nós admirávamos papai como se ele fosse um deus humano. Ele fumava calmamente o cigarro e na fumaça aparecia seu rosto. Límpido. Livre.

Sei que Roberto, hoje, é igual a papai. Mesmo sem os cigarros. Paulo morreu num acidente de automóvel. Monica virou atriz de teatro e deve estar rodando mundo afora em suas apresentações sensacionais. Diogo, que antes parecia tão frágil como as mãos de papai, é engenheiro civil. E eu, que passava as noites a ver e ouvir papai depois do jantar, continuei escrevendo minhas memórias. Que nasceram no dia em que descobri que nós éramos papai, cinco vezes.

São Paulo, 30 de julho de 1979

Thereza Christina Rocque da Motta

5 comentários:

  1. E eu não sabia que você era contista! Nunca me falou nada! Fico aguardando para fazer a revisão do seu primeiro livro de contos! rsrsrsrs Beijos e parabéns! PM.

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    1. O primeiro conto eu escrevi na sua casa na Urca! bjs.

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    2. É o que dá nome ao blog, Carnaval ou quase isso. Escrevi no quarto do seu pai, aos 18 anos.

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  2. Que bárbaro, TC! Não sabia que existia a TC em prosa, e me foi muito gratificante ler vc.
    Já está nos meus favoritos.
    Beijos,
    Lílian Maial

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