quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A FLOR ENCANTADA


Ah! Que la vie est quotidienne!

Jules Laforgue

Ana pousou, enfim, as mãos sobre a mesa já posta. A toalha secava seu olhar úmido. A tarde esvaziava-se, lenta. Olhou os pratos, solenes em sua branca dormência, à espera dos visitantes. Respirava docemente, cansada do seu longo dia, como se desfolhasse ao vento. De repente, um leve bater à porta a fez pestanejar de espanto e, sem conter a hesitação, dirigiu-se até a entrada da casa. Tudo parecia ocupar o lugar de sempre. Apenas ela estava ausente. Não cuidara de ver a hora e eis que a pegavam ainda incompleta, desencontrada. Não sabia o que fazer. Estava ela ali, a cuidar das visitas do marido que ainda não havia chegado. Uma quase mudez cercava-a por completo. Porém, logo a melancolia devastava a placidez de seus movimentos. Felipe chegara. Correu ao quarto vestir-se depressa. Sentia a cabeça rodando, uma espécie de falta de ar, uma ansiedade que a incomodava, causando-lhe pânico. Pintou os olhos, escovou os cabelos e ajeitou-os na nuca formando um pequeno coque. Ao voltar para a sala, recebeu as flores que outro casal de amigos havia trazido. Ornou o vaso de cristal com as rosas abertas. Como as rosas, ela se sentia murchar ao calor da casa. Ana mantinha-se alheia à conversa, desinteressada e distante. As vozes invadiam-na, mortificando-a de angústia. E os outros mal notavam seu estupor, enquanto degustavam, prazerosamente, a galinha encharcada de óleo.

A noite passou despercebida. Foi-se a última visita. O sono já lhe pesava, imenso. Ela não mais pensava. Apagou todas as luzes e seguiu para o quarto, quase dormindo, bocejando as palavras, arrastando os pés no tapete. Caiu na cama, sem barulho.

O marido, ao vê-la, reconheceu seu rosto triste, seu silêncio de sempre. Puxou-a para si, vislumbrando na escuridão a sua mulher, que somente ele conhecia e não se cansava de amar. Que se mostrava para ele como jamais vira mostrar-se para outra pessoa. Sabia que estava suada de tédio e não reclamava. E seu desabafo era, apenas, um agonioso sorriso. No entanto, era ela, com seu parco silêncio, quem o acalmava das turbas dos homens, reduzindo-o a um mero ser dolorido. Era ela quem compartilhava suas dores, mesmo sem compreender, quem aliviava suas mágoas, quem desfazia seu cansaço, restituindo-lhe sua felicidade de poucas alegrias. Era ela, sua única alegria.

Ana abriu os olhos e fitou-o, comovida. Estava tão entregue aos lençóis, tão farta do trabalho caseiro e tanto sonho de princesa. Abraçou-o, encostando-o ao travesseiro, num pedido de sono e promessa de uma manhã longínqua. Felipe ficou ali, perto dela, aceitando o sono que já o dissolvia, fazendo-o sentir-se sem culpa, sem nome, apenas ele.

***

Mal amanheceu, Ana empurrou-se para fora da cama. Abriu as janelas e o vento esfriou-lhe o corpo. Voltou-se para Felipe, ainda deitado. Olhou-o com carinho e demorou-se assim, percebendo seus olhos cerrados, sua expressão adormecida. Por instantes, esqueceu de ir à cozinha, de preparar o café, de esquentar o leite, pegar o pão. Sentiu vontade de passar o dia a admirar o seu homem, o marido, Felipe. Ele envelhecia bonito. Chegou perto dele, acariciou seus cabelos escuros e ficou sentada ao seu lado, sem coragem para abandoná-lo dormindo. Pensando isso, levantou-se devagar e saiu do quarto.

Vagou pela sala, absorta num marasmo indefinível. Quis entender por que se sentia tão solta, tão sem rumo, tão incerta. Amava Felipe e era bom. Não tinham filhos ainda, mas isso viria com o tempo. Ana sabia que havia algo que a torturava muito. O monótono do seu dia, a falta de Felipe. Não gostava de se sentir tão só. Os amigos de Felpe haviam procurado entretê-la com conversas sobre política, assuntos de escritório, boates, uísques e viagens. Ela permanecera apagada, desligada, torpe para o burburinho de futilidades que a mergulhava ainda mais em desprazer. Felipe admirava seu colega Russel, o bravo Henrique de tantas histórias fantásticas. Ana bocejava com discrição. Sua mulher, Clara, como era atenciosa. Mas um enjoo. E estiveram também os Cunha, Flavio e Elisa, os Afonso Machado, Sergio e Maria Augusta. E Ana parecia bonita em sua solidão. Felipe, sempre animado, entusiasmado. O rapagão simpático. Mas Ana sabia como buscar nele o verdadeiro Felipe, desolado e inseguro, e trazê-lo à tona para matar a sede do seu sofrimento. Amava-o tanto!

Na cozinha, os pratos coloriam o metal da pia e os talheres ensopavam-se no molho de detergente. Descerrou a cortina em cima do fogão e a luz entrou estreita e comprida pelos vãos dos vidros. Principiou a aprontar o café da manhã, ardendo de fome e calor. Felipe chamou-a de dentro. Encontrou-a na sala e, olhando-o muito, esqueceu todos os seus pensamentos ao beijá-lo. Caminharam para a cozinha, enquanto Ana lhe perguntava como tinha dormido. Distraiu-se assim, e nem notou que o leite transbordara da leiteira, cobrindo o fogão com uma lava branca de espuma. Soltou-se de Felipe num “Meu Deus!”, e correu para apagar o fogo, desatando a rir.

– Vê o que me fez fazer?

Felipe também ria, sentado à mesa, apreciando, de longe, a forma esguia de Ana. Um dia soube entender aquele jeito de menina, aquele andar desligado, aquele corpo que se dispunha sereno. Ela trouxe os ovos quentes, o pão e serviu-lhe o café. Sentou-se à sua frente, encerrada em sua meiguice, numa calma que não conseguia esconder, de todo, a turbulência fumegante dos olhos, a inquietação constante, a solidão do seu dia. Felipe alcançou a sua mão sobre a mesa e apertou-a, solidariamente triste, sinceramente machucado pela paciência da mulher. Disse:

– Amanhã é sábado.

Ana, recuada em seu silêncio, fez um ar de sempre ouvir. Franziu o nariz, numa demonstração de carinho e repetiu, evasiva:

– Amanhã é sábado...

Então, lembrou-se de olhar a geladeira, fazer a lista do supermercado. Ocupava-se instintivamente da casa. Tornara-se um hábito zelar por ela. Felipe percebia seus gestos fugidios. Ana coroava-se de encargos. Com ela, estavam todos os seus cuidados, embebidos numa sensatez incomparável, de uma compreensível irracionalidade. Ressentia-se de vê-la assim. Queria redimi-la do serviço da casa, curá-la daquele mal imposto, levá-la para passear, para fazer compras, deixar de lado os afazeres, desmontar toda aquela vida de compromissos, submeter-se à vontade de ficar com ela mais tempo.

Ana permanecia longe, abalada, submissa, revolta em seu desespero que emergia nas lágrimas, apavorando-a como no jantar com os amigos do escritório. Sabia que ela permanecera calada não por vontade, mas por mal-estar. Sentia-se um pouco culpado. Havia algo que se deixava estar dentro dela que ele não pudera perceber totalmente. Tentara aproximar-se tantas vezes e ela se recusava gentilmente para não incomodá-lo com “besteiras”, como ela mesmo dizia. E prometia um sorriso. Mas o sorriso não vinha. Chorava em seu ombro, como se uma dor muito grande a houvesse cerrado nos punhos, levando-a à loucura. Pobre Ana! Por que não lhe dizia logo o que se passava?

Aproximou-se dela. Antes que pudesse tocá-la, ela perguntou, rápida:

– Você já vai?

Felipe quis dizer que não. Que ficaria em casa. Que deixaria de ir trabalhar para que ela o tivesse por perto e, quem sabe, começar a mudar tudo aquilo que para ela parecia ser o mais certo, tirá-la do exílio em que se isolara, sensível e encolhida, e de onde lhe acenava um adeus quando partia pela manhã. Que a faria entender tantas coisas para que vivesse sem mais tanto dissabor. Mas ela continuou, ainda rápida:

– E não se esqueça de me trazer, por favor, o...

Não a deixou terminar. Beijou-a de um modo intenso, abraçando-a muito contra si, como se quisesse dissipar todo o medo de Ana. Não, ele não poderia deixá-la, não naquele momento, não quando ela naufragava cada vez mais no obscuro esconderijo de cada dia. Não, se ele pudesse trazê-la de volta, recapturá-la, reconstruir o mundo perdido de Ana.

Suspirou, inconformado. Ana imobilizara-se em seu abraço, tão pequena e indefesa, novamente incrustada em sua inabalável mudez.

– Sim, está bem. Eu não vou esquecer.

E, sem palavras ou pressentimentos, dirigiu-se à porta.

São Paulo, 15 de novembro de 1976

Thereza Christina Rocque da Motta

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